Postado em 20 de Janeiro de 2020 às 08h59

Brasil Sem Frestas

Educação Ambiental (23)

Iniciativa transforma embalagens de papel em revestimento térmico para casas e muda a realidade de centenas de famílias em 36 cidades do Brasil

Por Angela Piana


Era setembro de 2009, uma noite de tempestade na cidade gaúcha de Passo Fundo quando o sono de uma moradora foi substituído pela preocupação. Maria Luiza Camozzatto, 63, queria encontrar algo que pudesse ajudar as pessoas em situação de vulnerabilidade causada pela chuva forte.

Assim que o dia amanheceu, a química industrial, empresária e ex-professora universitária teve o despertar para a solução em algo que normalmente vai para o lixo ou para a reciclagem: caixinhas de leite. Maria Luiza sabia que a embalagem poderia, de maneira durável (200 anos), ser a matéria-prima perfeita para forrar paredes e impedir a passagem de água e de vento pelas frestas encontradas na madeira.

“Me sentia segura no meu apartamento, mas lembrei de quando era criança e ia com uma tia ajudar em comunidades da periferia. Eu ficava imaginando como as pessoas estavam com aquela chuva. Foi um plano divino, porque eu tinha que ajudar, mas precisava ser algo viável e barato”, conta Maria Luiza.

No dia seguinte à inspiração, Maria Luiza pesquisou mais sobre o assunto, iniciou os testes para cortar, grampear as embalagens e montar as placas térmicas. Aos poucos, passou a espalhar a ideia pela cidade com a ajuda de agentes comunitários, associações, lideranças e a internet, na busca de voluntários e apoio ao projeto batizado de Brasil Sem Frestas. Só um ano depois o primeiro revestimento foi realizado.

“Foi no dia 12 de outubro. Era o quarto de um menino de nove anos e tinha muitas frestas. A gente ainda não sabia bem a técnica de aplicação, mas grampeamos as embalagens na parede e fizemos o mesmo no assoalho. Algo que iria para o lixo deixou uma criança muito feliz e até hoje ajuda a melhorar a condição de vida das pessoas”.

Em Passo Fundo, o Brasil Sem Frestas já beneficiou 255 famílias e outras 11 estão na lista de espera para terem suas casas revestidas. Cerca de 50 voluntários se reúnem em um galpão cedido por uma rede de supermercados para montar as placas. A meta é forrar duas casas por semana.

O projeto conta com um bazar na entrada do galpão, cuja renda da venda dos produtos doados pela comunidade serve para comprar grampos, grampeadores e custear a manutenção dos equipamentos usados.

Para a idealizadora do projeto, a vontade de fazer o bem é um exercício de agradecimento. Maria Luiza tem esclerose múltipla desde os 46 anos e chegou a perder os movimentos dos braços e das pernas, quadro revertido com tratamento médico que ela segue até hoje. Dezessete anos depois do diagnóstico da doença, ela conta que a cura foi o que despertou o sentimento de gratidão.

“Quando voltei a andar eu entendi que precisa ajudar as pessoas como forma de agradecimento pela minha vida. Esses anos à frente do Brasil Sem Frestas me ensinaram a amar o próximo. O projeto é mais forte que eu, é minha vida”, fala emocionada.

Como funciona o projeto

O projeto Brasil Sem Frestas é desenvolvido em 36 cidades brasileiras e visa o conforto dos moradores com o revestimento das casas por placas térmicas feitas de embalagens de papel. A ação retira do meio ambiente um produto de difícil decomposição, por meio da reciclagem direta e melhora a saúde pública.

O material produzido com embalagem longa vida é indicado para qualquer tipo de clima: nos locais mais frios, a parte prateada da placa é instalada virada para dentro da casa, enquanto onde o clima é mais quente, a parte estampada fica para fora da residência. Com o uso das placas, a diferença térmica interna e externa da casa chega até oito graus. Quanto mais forrada for a residência, melhor o resultado, por isso a indicação é que o revestimento seja aplicado nas paredes, teto e chão.

As embalagens são selecionadas por cores e marcas e cada placa é feita com seis caixas costuradas ou grampeadas. Cada embalagem tem seis camadas: quatro de plástico, que evitam a entrada da chuva; uma de alumínio, considerado isolante térmico; e o papelão, que dá mobilidade.

A coleta das embalagens é realizada de acordo com a organização dos multiplicadores de cada cidade, mas normalmente há pontos de arrecadação, ou então, os próprios voluntários fazem o trabalho de coleta. As embalagens precisam estar limpas para evitar contaminação e o material descartado, assim como as tampinhas, é encaminhado para a reciclagem.

Além de caixas de leite, o projeto também utiliza embalagens longa vida de suco, iogurte e água de coco.

Transformando vidas

A escolha das famílias que terão as casas contempladas pelo Brasil Sem Frestas leva em consideração a urgência de cada caso. As solicitações chegam até os organizadores do projeto por indicação da comunidade, através de agentes de saúde, clubes de serviços e dos próprios voluntários.

A cozinheira Regiane Marques da Silva, 39 anos, mora com a filha numa casa simples construída por ela mesma, num terreno cedido por um conhecido, em Chapecó/SC. Foi uma assistente social quem percebeu a necessidade e a indicou para receber ajuda.

“Meu caso foi considerado de urgência e foi atendido bem rápido. No dia da instalação das placas, o pessoal ficou aqui uma tarde inteira e colocou forração em toda a casa”, explica.

Regiane conta que confiou no projeto porque já havia trabalhado com reciclagem e sabia que as embalagens eram resistentes. Ela diz que houve muita diferença de temperatura dentro da casa depois da instalação das placas térmicas, tanto no verão quanto no inverno. Também explica que o material é de fácil manutenção e prático para limpar. Mas o principal benefício foi para a saúde da filha que tem dois anos e oito meses.

“Depois que colocaram as placas, a Ágtha nunca mais ficou internada. Ela tem bronquite, mas as crises de respiração acabaram. Eu nem sei como agradecer o que fizeram, porque a gente é simples e esse projeto só ajudou”. 

Multiplicando a ideia

O modelo de auxílio social do projeto Brasil Sem Frestas vem sendo aplicado em várias partes do país. No Rio de Janeiro, por exemplo, 60 famílias dos municípios de São Gonçalo e Magé já foram beneficiadas com a iniciativa que começou a ser desenvolvida há dois anos.

No estado carioca, o projeto foi batizado de Nossa Casa e recebe auxílio da iniciativa privada. Uma empresa distribuidora de energia elétrica é patrocinadora e faz a escolha das comunidades carentes para a implantação das placas térmicas nas residências. Os critérios de escolha consideram como prioridade casas com pouca ventilação, que tenham telhado de amianto ou onde residam crianças e idosos.

“A coleta das embalagens acontece a partir da mobilização de associações comunitárias e empresas. Quando temos material suficiente, definimos a comunidade e contratamos a mão de obra para montar e fazer a aplicação das placas. Os prestadores de serviços são membros da própria comunidade beneficiada”, explica o coordenador do projeto, Gustavo Camozzatto, que é sobrinho de Maria Luiza, idealizadora do projeto Brasil Sem Frestas.

O uso das placas térmicas tem auxiliado no controle dos efeitos do calor, uma característica marcante do Rio de Janeiro. Elas são instaladas a 20cm do teto, reduzindo consideravelmente a temperatura.

“Nas residências onde o telhado é de amianto a média de temperatura é de 41 graus, mas com o uso das placas térmicas chega a baixar oito graus. Além de diminuir o consumo de energia, a iniciativa também tem melhorado o convívio das famílias que conseguem ficar mais tempo em suas casas, porque a temperatura alta não é mais um problema”, justifica Camozzatto.
 

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